músico, escritor e pesquisador, o carioca lança seu primeiro álbum com 12 faixas que reverenciam o samba de breque e seus mestres
samba sincopado e de breque ganha novo fôlego com o álbum de estreia de Zeh Gustavo. Lançado em 2025 pela DG Music, Cuidado, Zehzeira! marca a entrada oficial do artista carioca no universo fonográfico, depois de uma trajetória consolidada em rodas de samba, projetos literários e movimentos culturais. Com 12 faixas — entre autorais e regravações emblemáticas — o disco é um mergulho profundo no samba crônica, aquele que desacelera para provocar, rir e resistir.
Gravado no WM Estúdio, sob direção musical e arranjos de Daniel Delavusca, o álbum é um tributo ao samba de breque e ao samba sincopado, estilos historicamente marginalizados no mainstream, mas fundamentais à identidade cultural brasileira. O trabalho conta com participações especiais de Mingo Silva, Paulinha Diniz e Didu Nogueira, além de um time de músicos que honra a tradição do gênero com refinamento e autenticidade.
“O breque está vivo, obrigado!”, afirma Zeh Gustavo, que batizou o disco com a faixa Rei do gatilho, de Miguel Gustavo — uma ode ao estilo consagrado por nomes como Moreira da Silva, Jorge Veiga, Nei Lopes e Wilson Baptista. “Cuidado, Zehzeira!” é mais do que uma estreia: é um manifesto que se contrapõe à pasteurização do samba imposta por modismos comerciais.
O artista por trás da Zehzeira
Zeh Gustavo não é apenas cantor. É escritor premiado, revisor, pesquisador e cronista do cotidiano urbano. Com formação em Letras e mestrado em filosofia política, é membro da Red Iberoamericana de Filosofía Política. Sua dissertação abordou o conceito de “vida outra” de Foucault em diálogo com o escritor da marginália Antônio Fraga. Essa intersecção entre arte, política e pensamento permeia todo seu trabalho musical.
Sambista desde 2009, Zeh é figura central em rodas tradicionais do Rio de Janeiro, como o Samba da Conceição e o Samba do Lalau de Ouro — este, uma homenagem a Hilário Jovino, precursor do carnaval de rua. Criou ainda grupos como Terreiro de Breque e atua em projetos como o Chorinho do Aposentado e o Bolero do Aposentado, realizados no centenário Botequim do Joia.
Sua trajetória inclui passagens por feiras e festivais literários, livros publicados desde 2005 e participações musicais em álbuns de outros artistas. Cuidado, Zehzeira! é, portanto, fruto de uma caminhada densa, que alia crítica social, produção cultural e vivência nos territórios do samba.
Faixas que narram um samba crítico e irônico
O álbum abre espaço para composições autorais e regravações que se entrelaçam em tom e conteúdo. Entre os singles já lançados estão Beto bom de bola, do gênio Sérgio Ricardo, e Mignon com queijo magro, feita em parceria com Marcelo Bizar. A primeira relembra o espírito combativo do compositor que lançou seu violão ao público no Festival da Canção de 1967. A segunda é um “manifesto antigourmetização” que satiriza o elitismo gastronômico e cultural da atualidade.
Outra pérola é Santo Guerreiro, composição da sambista maranhense Patativa, anteriormente registrada apenas com Zeca Baleiro. A canção reafirma o elo entre samba e religiosidade popular, evocando a ancestralidade afro-brasileira que permeia o disco.
Ainda que o samba de breque seja o eixo principal, o álbum flerta com outros gêneros: há maxixe, ijexá, samba de roda, ponto cantado. É uma obra plural, mas coesa — que narra, ironiza e resiste. “Trata-se de falar de um ritmo. De uma estética marginal que é, ao mesmo tempo, o coração do samba”, explica Zeh.
História viva do samba marginal
O samba de breque, que surgiu com Luís Barbosa nos anos 1930, é um gênero marcado pela pausa rítmica dramática, que permite ao cantor inserir comentários irônicos ou surreais. Moreira da Silva levou o estilo ao auge, com personagens como Kid Morengueira. Na década de 1950, Jorge Veiga e Nei Lopes também exploraram essa linguagem híbrida entre a música e o teatro.
Zeh Gustavo recupera essa linhagem ao colocar o samba de breque como linguagem central do seu projeto. “É uma forma que flerta com o absurdo, com o improviso e com o teatro popular. É samba que pensa e faz pensar”, afirma.
Segundo o artista, o estilo foi sendo empurrado para as margens com o avanço das fórmulas comerciais e a ascensão de subgêneros mais voltados ao entretenimento imediato. “O mercado quer o samba embalado para consumo. A Zehzeira vem para frear isso. Dar o breque na correria do óbvio”, provoca.
Produção cuidadosa e conexões afetivas
A produção de Cuidado, Zehzeira! é marcada pela escuta atenta e pelo cuidado artesanal com cada arranjo. O violonista Wellington Monteiro, técnico de som do álbum, traz a experiência de quem acompanha Martinho da Vila. Os convidados Mingo Silva, Paulinha Diniz e Didu Nogueira emprestam brilho e consistência às faixas, enquanto Delavusca orquestra o conjunto com equilíbrio entre tradição e invenção.
“Não é um álbum nostálgico. É um samba que fala de hoje, com a força do ontem. É memória viva”, sintetiza Zeh.
Literatura, música e política
Na literatura, Zeh Gustavo também se destaca. É autor de livros como Pequeno manual de preparo do solo para um constructo de destroços (Urutau, 2024) e Uma vírgula no findomundo (Libertinagem, 2022). Vencedor do Prêmio Lima Barreto da Academia Carioca de Letras, publicou contos, ensaios e organizou coletâneas que confrontam o conservadorismo cultural.
Na música, sua obra já foi interpretada por artistas como Kell Santos, Lucio Sanfilippo e Fabíola Machado. Seus projetos em Cuiabá e no Rio demonstram um compromisso com o samba feito em comunidade, em roda, para o coletivo. “Samba é corpo presente, é convivência, é tempo compartilhado. A Zehzeira é isso também”, conclui.
Com Cuidado, Zehzeira!, Zeh Gustavo firma-se como voz múltipla e necessária na cena brasileira — um artista que escreve, canta e pensa com o mesmo rigor. E que faz do samba não só música, mas ferramenta de memória e transformação.